quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A dama e o vagabundo no parque do pau podre.


João Wagner Galuzio

Um dos endereços mais festejados de São Paulo, o parque do pau podre está localizado entre terras altas como o Planalto Paulista e o Paraíso e recebe grande parte das águas fluviais ou de monções destes lugares. Em tempo não muito longínquo, antes da vertiginosa urbanização e consequente [falta de] saneamento básico, tinha um solo especialmente úmido –e fértil- até alagadiço, onde a madeira restava podre porque encharcada.

Os índios tupis em sua sabedoria natural apelidaram o lugar de “ypira-ouêra” hoje Ibirapuera, onde está o parque de mesmo nome. O parque, em sua inauguração, nos idos de 1954 por ocasião do IV Centenário da cidade, recebeu instalações de Niemeyer que atestavam a sua nova vocação como espaço de cultura e lazer, chamado por muitos de “praia do paulistano”. Cheio de cantos esconde encantos improváveis com sua fauna muito peculiar.

Bem cedo se podem encontrar cobras e lagartos, esquilos e gambas buscando amparo em seus soturnos esconderijos, muito próximos de corredores e caminhantes matinais. À tarde pode-se ouvir o zunido de morcegos voando baixo devorando quilos de insetos perto de postes iluminados tão atraentes para os minúsculos insetos.

Ao longo do dia podemos nos divertir oferecendo milho ou quirera aos gansos e pombos. Os peixes, aos milhares, como que desconfiados são muito arredios, sabidos que são da presença de paturis famintos que se fartam e se lambuzam às suas custas. Neste zoológico aberto e dinâmico encontram-se muitos gatos, quase todos pretos, muito bem nutridos e uns poucos cães vira-latas. É aqui que a história ganha contornos mais interessante.

Estava eu lá caminhando forte e afoito buscando novas trilhas para amenizar os vários milhares de metros necessários de todo dia, quando levei um tremendo susto. Ali como quem vai sair para a passarela Ciccilo Matarazzo, logo depois da Praça do Leão, após uma pequena ponte, dobrei à esquerda por um pequeno atalho entre mato ainda orvalhado de calmas folhas altas e largas, que bocejavam ao calor gostoso do sol tímido da manha. Bastante concentrado vi e ouvi um rápido e intenso farfalhar de algumas folhas como se uma foice invisível rasteasse violentamente onde tudo mais em volta era silêncio.

Meu coração disparou em centésimos de segundo e, embriagado de adrenalina, antes que se completasse um novo segundo após este relâmpago que dobrava folhas, por onde e enquanto fugia, percebi a figura de um cão de magro, de tamanho médio, quase esguio como um galgo, evidentemente saudável que me olhava entre feroz e assustado. Antes que pudesse dar mais um passo e de completar outro segundo pude ver outro animal também sem raça definida, mas parecido com o primeiro.

Percebi logo que meu caminho alternativo revelou-se uma ameaça, uma invasão àquele reduto calmo destes bichos. Tratei de sair logo dali pensando em não provocar um ataque e a completar, em minha mente, o quadro que o episódio configurava. O segundo cachorro era na verdade uma fêmea que, prenha, descansava ao lado de um tronco numa pequena clareira.

A imagem da fábula, imortalizada por Walt Disney (A dama e o vagabundo) em uma de suas obras-primas veio de forma intensa em minha mente. “-Estavam ali na minha frente, A dama e o vagabundo”, pensei. Perdidos e livres, cumplices e companheiros. O olhar que inicialmente achava assustado agora ganhava novo significado, parecia-me suplicar que mantivesse distância. Ainda posso ver seus olhos negros aflitos. O cão pôs-se entre nós, eu e a pequena mamãe, fiel, alerta e protetor, enquanto a daminha concentrada, mantinha-se em seu ofício de gestação.


Quis –e tentei- voltar para me aproximar deles, mas aí o instinto falou mais alto e o macho pôs-se a rosnar. Mais tarde no mesmo dia e em outras vezes voltei ao ninho, a pé ou de bicicleta, com ou sem câmera fotográfica para gravar suas imagens, mas não tive sorte. Ficou apenas a cândida memória daquele encontro casual...

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