João Wagner Galuzio
Um dos endereços mais festejados de São
Paulo, o parque do pau podre está localizado entre terras altas como o Planalto
Paulista e o Paraíso e recebe grande parte das águas fluviais ou de monções
destes lugares. Em tempo não muito longínquo, antes da vertiginosa urbanização
e consequente [falta de] saneamento básico, tinha um solo especialmente úmido –e fértil-
até alagadiço, onde a madeira restava podre porque encharcada.
Os índios tupis em sua sabedoria natural
apelidaram o lugar de “ypira-ouêra” hoje Ibirapuera, onde está o parque de
mesmo nome. O parque, em sua inauguração, nos idos de 1954 por
ocasião do IV Centenário da cidade, recebeu instalações de Niemeyer que atestavam
a sua nova vocação como espaço de cultura e lazer, chamado por muitos de “praia
do paulistano”. Cheio de cantos esconde encantos improváveis com sua fauna
muito peculiar.
Bem cedo se podem encontrar cobras e
lagartos, esquilos e gambas buscando amparo em seus soturnos esconderijos,
muito próximos de corredores e caminhantes matinais. À tarde pode-se ouvir o
zunido de morcegos voando baixo devorando quilos de insetos perto de postes
iluminados tão atraentes para os minúsculos insetos.
Ao longo do dia podemos nos divertir
oferecendo milho ou quirera aos gansos e pombos. Os peixes, aos milhares, como
que desconfiados são muito arredios, sabidos que são da presença de paturis
famintos que se fartam e se lambuzam às suas custas. Neste zoológico aberto e
dinâmico encontram-se muitos gatos, quase todos pretos, muito bem nutridos e
uns poucos cães vira-latas. É aqui que a história ganha contornos mais
interessante.
Estava eu lá caminhando forte e afoito
buscando novas trilhas para amenizar os vários milhares de metros necessários
de todo dia, quando levei um tremendo susto. Ali como quem vai sair para a
passarela Ciccilo Matarazzo, logo depois da Praça do Leão, após uma pequena
ponte, dobrei à esquerda por um pequeno atalho entre mato ainda orvalhado de calmas
folhas altas e largas, que bocejavam ao calor gostoso do sol tímido da manha. Bastante
concentrado vi e ouvi um rápido e intenso farfalhar de algumas folhas como se
uma foice invisível rasteasse violentamente onde tudo mais em volta era
silêncio.
Meu coração disparou em centésimos de
segundo e, embriagado de adrenalina, antes que se completasse um novo segundo
após este relâmpago que dobrava folhas, por onde e enquanto fugia, percebi a
figura de um cão de magro, de tamanho médio, quase esguio como um galgo,
evidentemente saudável que me olhava entre feroz e assustado. Antes que pudesse
dar mais um passo e de completar outro segundo pude ver outro animal também sem
raça definida, mas parecido com o primeiro.
Percebi logo que meu caminho alternativo
revelou-se uma ameaça, uma invasão àquele reduto calmo destes bichos. Tratei de
sair logo dali pensando em não provocar um ataque e a completar, em minha mente,
o quadro que o episódio configurava. O segundo cachorro era na verdade uma
fêmea que, prenha, descansava ao lado de um tronco numa pequena clareira.
A imagem da fábula, imortalizada por Walt
Disney (A dama e o vagabundo) em uma de suas obras-primas veio de forma
intensa em minha mente. “-Estavam ali na minha frente, A dama e o vagabundo”, pensei. Perdidos e livres, cumplices e companheiros. O olhar que inicialmente achava
assustado agora ganhava novo significado, parecia-me suplicar que mantivesse
distância. Ainda posso ver seus olhos negros aflitos. O cão pôs-se entre nós,
eu e a pequena mamãe, fiel, alerta e protetor, enquanto a daminha concentrada, mantinha-se
em seu ofício de gestação.